10.10.12

Sobre o estado de Rocha pleno

Sobre o estado de Rocha pleno
Lição de Geologia

Há uma camada de poeira que recobre as coisas, protegendo-as de nós. Polvilho escuro da fuligem, fragmento de sal e de alga, toneladas de matéria em grãos que vão cruzando o oceano transformam-se em fiapos transparentes depositados pouco a pouco para preservar o que ficou embaixo. Quase nada se tem pensado a respeito deste fenômeno. Trata-se provavelmente de uma enorme operação de camuflagem, de equalização de um sinal remoto que perceberíamos facilmente na ausência desta montanha de pequenos agregados. Algo dentro das coisas está sendo disfarçado, escondido a qualquer preço, e até mesmo o extrato de rocha, terra e lava seca onde pisamos, construímos nossas cabanas e parimos nossos filhos parece estar ali para embrulhar alguma coisa que tende ao centro. A agregação infindável da Gravidade, da massa caindo sobre a massa, matéria abraçando matéria num apetite sempre renovado, constitui a expressão mais evidente deste princípio. É como se um ser primordial, pleno numa gargalhada antiga, percebesse uma fenda em seu corpo ou pus em seus olhos, uma penugem de cor estranha em seu pelo ou ainda uma má formação em seus membros. Antes de abismar-se na tristeza, envergonhado com o que percebeu, conseguiu ainda recobrir-se com o que havia a sua volta, apanhando tudo o que deixara escapar de si, pois até a pouco fazia parte do teu corpo perfeito a matéria que agora se vestiu - a poeira e a terra, a folhagem e a penugem, o fogo explosivo das estrelas e a escuridão congelada. A gigantesca espiral em movimento, concêntrica, como um feto encolhendo-se, com que se retraiu esta divindade incapaz de compreender-se, de incluir-se inteira, ensinou ao tempo e ao espaço, que até então estavam nela, eram ela, o seu comportamento básico - tombo, solavanco, suspensão; areia, matéria, enigma. É difícil compreender como terá irradiado pelas coisas esta atitude de reclusão e de vergonha. A matéria, na verdade, talvez não seja mais do que a expressão primeira desta fuga. Ao invés da afirmação explosiva a partir de um nada pleno, toda a Física teria por princípio a negação e o ocultamento de alguma coisa percebida, o disfarce de um defeito, a espiral protetora em torno de uma identidade cheia de desgosto.
A expansão do universo, segundo este ponto de vista, deveria prosseguir apenas até que o descobrimento se cumprisse, tornando-se depois desnecessária. Mas se o fluxo de poeira e lava em nosso planeta continua, se a luz desvia em seu espectro para o vermelho, indicando o afastamento progressivo das estrelas já tão afastadas, é porque o corpo envergonhado não pode ainda se cobrir inteiro. Na verdade, o movimento com que giram os gases aquecidos, os choques de massas polares com o ar mais leve e quente que vem dos trópicos, a condensação das tempestades sobre o oceano, todo o sal lançado na atmosfera, a luta das mucosas e das guelras, o sofrimento mesmo das aspirações humanas, dragões espalhando lantejoulas e escamas, vidas ceifadas, pedaços de madeira que naufragam, olhos que a catarata vela, bacia onde moram os sargaços, tudo oque ficou cinzento e floriu depois da primavera, tudo o que outono equalizou com prata e monotonia, o rosado leve do poente, o ar que enche o peito de alegria, parecem na verdade parte de uma astúcia, gestos furtivos que não compreendemos, sequelas de um corpo enorme e defeituoso que tenta inutilmente recobrir-se, sumir debaixo da aparência. O motivo de seu fracasso, provavelmente, deve-se ao fato de a matéria de que se recobre ser ela mesma parte sua, compartilhando sua decepção - também ela quer ocultar-se, reproduzindo infinitesimalmente o movimento que deveria ser restrito ao caroço que lhe deu origem. Acaba assim traindo por mimetismo e semelhança o papel que lhe foi designado enquanto a longa litania do que existe, virando seu rosto para dentro, neutralizando suas feições, desfila lentamente. Talvez seja uma contradição curiosa aquilo que tanto se esconde precisar de testemunhas como nós, que contemplamos, admiramos, e ainda por cima, achamos bonito. Pois assim, todo o apagamento progressivo, a nebulização periódica do que poderia brotar em flores enlouquecidas, a monotonia de uma linguagem que devia ser de carne, uma matemática que devia ser de troncos e de mármore, sim, toda a laguna de possibilidades que a frágil ambição de nossos orgãos não soube verdadeiramente desejar, ganha seu imprimatur, sua documentação enquanto necessidade - abraçamos o que foge de nós, invertemos seu próprio desgosto e recusa, julgamos como perfeita a natureza envergonhada e defeituosa, aderimos, enfim, perdidamente e para sempre ao que parece belo, porque nos conformamos ao amar.


o relógio

o menino vinha, suado, correndo
entre a avenida lotada de carros
ônibus parados, ciclistas desviando
o menino corria

o menino pára no semáforo
um senhor, jovial, aborda o menino
no braço, o atleta porta um belo relógio
grande e brilhante: funcionando!

"Menino, que horas são?"
aturdido, ele se apalpa todo
procura as horas em si, mas não acha

segundos passados, o senhor a esperar
o menino lembra-se: um telefone no bolso!
puxa um celular e lê as horas ao mundo

1.10.12

a Fada do Pó

Ela pululava entre flores e peles
espalhando seu pó de estrelas
por toda a vida nas estradas
fazendo nascer o caos cintilante

no meio do caminho: Ele
Ela se assusta, derrama as centelhas
e, num mergulho, como adagas
o pó invade a narina, faiscante

suas asas, sujas e languidas
subitamente enraivecem: adoecem
e a levam pra cima Dele: acidente

entorpecida, suas unhas viram lâminas
seus atos delicados anoitecem
e o pescoço Dele: incadescente